Crítica ao disco "Cicatriz:ando" de Américo Rodrigues, publicada na revista "Praça Velha" nº 27 , Julho de 2010, por Rui Torres:Américo Rodrigues tem sido, em Portugal, um solitário representante da poesia sonora. Essa ausência de concorrência, porém, não deve contribuir para menorizar o trabalho do actor/autor. Pelo contrário, como parece comprovar este mais recente trabalho, os seus textos sonoros problematizam de um modo espontâneo mas inteligente o estatuto poético da palavra que se articula por intermédio da medialidade. Américo Rodrigues publicou já vários livros de poemas-objecto na área da literatura de invenção, além de ser co-director da revista literária Boca de Incêndio. No entanto, é no seu trabalho de improvisação vocal que encontramos a maior expressão de toda a sua criatividade. Fazem parte da sua obra de poesia sonora os discos: O despertar do funâmbulo (2000), Escatologia (2003), Trânsito local, trânsito vocal, com Jorge dos Reis (2004) e Aorta Tocante (2005), nos quais utiliza, além do espectro de possibilidades de articulação da fonética, objectos como brinquedos, apitos, buzinas de ar e cornetas de plástico. Arriscamos dizer que, com Cicatrizando, os elementos da fala humana se colocam de uma tal forma que nos permitem isolar a forma e a função da própria fala, tornando-o um dos mais relevantes trabalhos do autor até à data.
Publicado pela Bosq-íman: os records com o apoio da Luzlinar e do Instituto de Estudos da Literatura Tradicional da Universidade Nova de Lisboa, Cicatrizando reúne um conjunto de acções poéticas e sonoras nas quais são apropriados diversos materiais que têm origem na tradição oral portuguesa. Esses materiais, que vão desde lengalengas, orações e adivinhas até alcunhas e vocabulários de gíria, por si só não constituiriam novidade na obra do autor, rica em abordagens ao nosso património cultural. No entanto, em Cicatrizando temos como novidade estrutural a intervenção expressiva de certas tecnologias, as quais assumem um papel preponderante no processo de metamorfose a que são submetidos esses textos. De facto, a magia efémera das coisas que Américo Rodrigues captura com regularidade aparece agora inscrita em processos de desautomatização dos próprios mecanismos de reprodução de que é feito qualquer registo sonoro. Por isso, ao tornar visível esse aparato de reprodução, seja através da presença da materialidade dos sistemas de gravação, comunicação e amplificação que utiliza, seja ao introduzir expressivamente o telefone, o gravador de cassete, o megafone ou os intercomunicadores, o autor monta um conjunto de texturas sonoras do tipo meta-mediático, isto é, em que a própria reprodução técnica é desautomatizada e tornada reflexiva.
Assim, ao gritar orações no “túnel do medo” da sua infância ou alcunhas de cima de uma penedia, Américo Rodrigues exorciza a própria palavra poética, refém do apagamento mitológico em que a capturam as tecnologias da mediação. Em termos semióticos, trata-se de uma poesia que devolve ao ouvinte as condições de produção das próprias mensagens, obrigando-nos a deslocar a atenção para os vários elementos por que se processa a linguagem e a comunicação verbal no mundo que nos rodeia. Jogando com a função emotiva através da utilização de interjeições ou falas empáticas, Américo Rodrigues propõe ainda um labor com a mensagem, a qual assume autonomia estética, mas também com o canal de transmissão, isto é, com a função fática da linguagem. Deste modo, o envolvimento do trovador com o meio em que interfere e actua traduz-se num processo tipicamente sónico: a partir de um tema, que pode passar por telefonemas a perguntar soluções para adivinhas populares, orações em espaços públicos, divulgação de provérbios, leitura de rimances no mercado municipal ou canções de embalar cantadas dentro da água, verifica-se o adensamento e a condensação de processos, permitindo desse modo uma transformação progressiva da voz numa máquina de perguntar, inventar e devorar a tradição.
Por tudo isto, Cicatrizando não é apenas um disco para conhecedores, coleccionadores ou especialistas, mas antes uma oportunidade para qualquer um atravessar de um modo dialógico a necessária crítica e transgressão das formas culturalmente fixadas.
Rui Torres